GOLPE DE ASA /2025

Golpe de Asa começa com Luís, um jovem aluno a quem é incumbida a tarefa mundana de ler uma das mais emblemáticas tragédias portuguesas a tempo da aula seguinte. Nessa noite — entre sonhos, alucinações e pesadelos — reinventa a história clássica e substitui as personagens pelas suas colegas de turma, todas drag queens. Na tentativa de compreender e trazer para a sua realidade a intriga original, a turma de queens precipita-se por acidente na direção de uma tragédia a que podem finalmente chamar sua: a morte da fada da família, enquanto esta esperava pelo comboio da eternidade.

"És de Braga?" é a pergunta que por hábito se faz a quem deixa a porta aberta. Em Golpe de Asa, colocamos um desafio a esta expressão popular, expondo a tensão entre a cidade e a sua tradição histórica e os diferentes corpos e identidades que nela habitam, de forma periférica e, por vezes, invisível. Este espetáculo surge do encontro entre o artista Sílvio Vieira e intérpretes queer residentes em Braga, e dá continuidade ao conjunto de inquietações levantadas durante as Assembleias do Desejar.

Estreou às 21h30 do dia 14 de Junho de 2025, no Theatro Circo, em Braga.

90 min | M14

disponível para digressão
vídeo de espetáculo • dossier técnico

direção Sílvio Vieira
texto Sílvio Vieira, com excertos do elenco e de Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett
interpretação Andrey Moura, Duda Abreu aka Dèvi Dévil, João Malheiro, Luís Oliveira aka DÒLLE, Rui Ferreira, Vânia Silva, Vinícius Reis aka Mango Green

produção Daniela Leitão
cenografia Rafael dos Santos
desenho de luz Luís Silva

fotografia Lais Pereira e Inês Pereira
registo de vídeo
Miguel De

uma coprodução outro com Desejar — Movimento de Artes e Lugares Comuns, um projeto integrado no programa oficial Braga 25 Capital Portuguesa da Cultura
apoio à produção NÓMADA — Centro Artístico
parcerias DisquePT, Tuck It

agradecimentos Rosa Maria, Silvestre

Preparámos este espetáculo à distância, durante alguns meses, e erguemo-lo todo em Braga nestes últimos dias.

Adianto pouco, porque queremos que isto viaje para todo o lado e não queremos dar spoilers: um grupo de maravilhosas Drag Queens — algumas a fazer drag pela primeira vez, outras a representar pela primeira vez — agarra no Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett, resume-o todo numa cena de vinte minutos, resgata e transforma a tragédia original para a vivência contemporânea, e fá-lo entre diálogos e 14 lip syncs que são tão lindos como um colar de pérolas. Temos Madonna, Rihanna, Ágata, Deep Purple, Floribella, David Bowie, entre outres, que nunca imaginaram, talvez, ter a sua música a comunicar a trama principal de uma tragédia de 1843.

Pensei nesta tragédia-património (leitura “obrigatória” para jovens do secundário) por considerar que a sua desconstrução faria a ponte urgente entre tradição-nação-instituição-religião (enfim, maioria?), e uma periferia que é hoje, perigosamente e cada vez mais, alvo de violência, preconceito, ignorância. É triste e agoniante que tenha de existir um plano de segurança para a equipa (sobretudo este elenco) por fazermos um espetáculo que é, no fundo, uma celebração do amor, da existência, e da diferença. Estou convicto de que, ao fazer esta ponte, o espetáculo inclui e traz para junto de nós várias pessoas a quem a nossa voz tem dificuldade a chegar, seja porque não partilhamos os mesmos espaços de comunicação, seja porque é filtrada por preconceitos antigos ou infundados.

Este projeto teve a sua dose de risco, também, além do buraco que abrimos no chão do palco: que o projeto, dada a falta de tempo in loco, se tornasse participativo apenas no papel, que no caminho de adaptar o texto, o desprezássemos, e que o Frei Luís de Sousa fosse irrelevante para a história que queríamos mesmo contar. Acredito que conseguimos evitá-los: não só o espetáculo tem muito do que as nossas queens nos deram nas primeiras improvisações, como conta com os seus testemunhos pessoais no último ato. Quanto ao Frei Luís de Sousa, fico feliz porque julgo transparecer no espetáculo uma atitude de cuidado que esteve na base da criação: um esforço genuíno de entendimento da peça e de como esta pode servir de estrutura às nossas tragédias contemporâneas. Podemos sim, lutar sem destruir. Não tenho palavras para descrever o momento em que centenas de pessoas gritaram repetidas vezes pelo nome da Sa-fada, uma queen verde com asas que substitui o mordomo da trama original, na transição entre os dois atos, por julgarem que estava morta (ou, talvez, porque o Andrey é um ator absolutamente brilhante).

ESTE ESPETÁCULO

Termino regressando ao início: quando eu, o Rafael e a Daniela conhecemos as nossas queens na primeira residência, ficámos de tal forma assoberbados (no melhor sentido) que nos obrigámos gentilmente a dar as mãos num pacto: honrar a potência del_s — em talento (muito, credo), e biografia — e ter a sala cheia, para que estas manas saibam que não estão sozinhas, e que, de facto, SOMOS MUITES MUITAS MUITOS MIL. Saímos ontem do teatro a rebentar de felicidade porque, juntos e com a equipa do DESEJAR, conseguimos entregar-lhes tudo isto e mais ainda. E o público abraçou-as com uma explosão de alegria e comoção. Deixo aqui em vídeo a catarse coletiva, captada pelo Miguel De.

Obrigado, primeiramente, aos meus amores Daniela Leitão e Rafael dos Santos. Ainda hoje me espanta a graça cósmica de vos ter encontrado. Do meu lado, espero poder continuar a nutrir a nossa amizade e a nossa arte. Adoro-vos muito.

Depois, ao Desejar, em particular ao Hugo, mas também à Simone, à Ana e a toda a equipa do movimento, por terem erguido estas plataformas sensíveis de contacto com comunidades plurais, vibrantes e por vezes esquecidas. A arte participativa tem um potencial de intervenção e transformação incrível. Além disto, o convite que nos fizeram foi, para mim, de forma muito pessoal — enquanto homem queer — um enorme presente. Este foi, a vários níveis, o espetáculo mais pessoal e íntimo que já fiz.

Agradecer ainda à belíssima surpresa que foi o Luís Silva, na luz, ao apoio do André Leite no som, à Wilma na direção técnica, a toda a equipa do Theatro Circo e à sua generosidade e profissionalismo, à Rosa Maria que deu apoio aos figurinos, ao Silvestre que esteve connosco em coração e na residência, à Joana que registou vários momentos, ao Miguel que gravou isto em vídeo para que agora, com tempo, possamos disparar isto para todo o lado, e à Inês e à Lais, que nos fotografaram (espero não ter omitido ninguém).

Por último, e em especial, às nossas magníficas queens (*todes são QUEENS aqui!): Andrey Moura, Duda Abreu aka Dèvi Dévil, João Malheiro, Luís Oliveira aka DÒLLE, Rui Ferreira, Vânia Silva, Vinícius Reis aka Mango Green. Drag e teatro são o combo perfeito! Arrasaram muito e não caibo em mim de orgulho. E fico muito sensibilizado por saber o que significa, para todes vocês, pisar e, enfim, ocupar um dos palcos centrais da vossa cidade.

Em nome de toda a equipa, dedico este espetáculo a todas as pessoas queer, sobretudo às que têm no passado ou no presente histórias de violência e homofobia. A todas as outras que têm a coragem, face ao medo e ao ódio, de nos acolher e proteger, obrigado. Ninguém está sozinho.

Sílvio
15 de Junho 2025

Rafael dos Santos, colagem digital de desenho em pastel de óleo, lápis de cor, acrílico e tinta de esmalte, 21 x 29,7, 2025

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